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Os insultos racistas estão arraigados nos estádios da velha bota. De acordo com os estudos de Giulio Tavoni, da Università di Bologna, o surgimento dos Ultras na Itália advém da influência dos hooligans ingleses e de movimentos políticos extremistas de esquerda e de direita. Suas composições sociais são diversas: alguns são trabalhadores, mas também há funcionários e estudantes, tanto do ensino secundário como universitário. Suas ideologias estavam pautadas e acentuadas pelo embate político e se reconheciam e se diferenciavam como tal, uns sendo da esquerda comunista e outros da direita conservadora.
O primeiro grupo foi a Fossa dei Leoni [Cova dos Leões] do Milan, em 1968. A partir da década de 1980 houve a proliferação de uma nova geração de jovens ultras, basicamente de ideias da extrema direita — neofascistas —, porém desprovida de uma história política e mais interessada no confronto físico. Agiam de forma independente e não reconheciam os líderes antigos, ocasionando a saída da primeira geração dos ultras do cenário. Atrelada a essa nova geração, ocorreu o aumento de violências incontroláveis, gritos e símbolos racistas e xenófobos, concomitantemente tornando o estádio palco dessas manifestações.
A torcida símbolo dessa nova geração, como mostrou a Futebol Magazine, é representada pelos Irriducibili [Irredutíveis] da SS Lazio, fundada em 1987. Esses novos ultras ganharam muitos adeptos e influências conforme a Itália afundava em crises e, assim, foram reivindicando a conhecida conexão do time com a ideologia de extrema direita do Mussolini. Símbolos nazis e fascistas, saudação aos jogadores com o braço levantado e a águia das legiões romanas usurpadas pelo antigo ditador, em sua construção de poder nos anos 20, são elementos que representam essa torcida. Um dos dogmas deste grupo é o emprego da violência contra equipes de militância política de esquerda. Esse jeito de vivenciar o futebol como uma batalha ideológica ultrapassa os gramados e indica uma mentalidade que enxerga a vida, em seu cotidiano, com um pensamento social e político bem definido.
Em lugares onde atitudes preventivas, de conscientização e de punição para estas situações não são tomadas, o futebol vira um palco de guerra. E com esse cenário desastroso, o argumento do grande sociólogo alemão, Norbert Elias, se torna validado, ao afirmar que o futebol é um ritual social, que substitui a batalha. Segundo o estudioso, os jogos permitem que as massas canalizem as agressões, tenham a sensação de forte pertencimento a um grupo que se opõe a outro grupo adversário, e que irão colidir e lutar com o objetivo de afirmar superioridade, sem temer repressões dos aparelhos estatais que, teoricamente, foram criados para controlar os atos ilícitos.
Ainda segundo Giulio Tavoni, em seus estudos sobre o racismo no calcio italiano do final da década de 1960 até o século XXI, o racismo continua ao longo desses anos se manifestando basicamente de duas maneiras. A principal delas seria a agressão por palavras ou gestos contra jogadores de cor da equipe adversária, seja ela lançada durante o jogo ou por cantos, seja por escrita (faixas), e, por vezes, culminando em atos com o arremesso de bananas, por exemplo. O outro tipo de manifestação é a denominada razzismo preventivo, em que os torcedores de uma equipe protestam contra a tentativa de contratar jogadores negros, e, sendo a negociação consumada, direcionam, durante a partida, xingamentos e protestos ao seu próprio jogador contratado.
É importante interrogar a diferença sobre essas duas modalidades de racismo apresentadas previamente. Seria, de fato, racista o torcedor que hostiliza um jogador negro adversário, mas que ao mesmo tempo é capaz de idolatrar um jogador negro do seu próprio time? Poder-se-ia dizer que esse torcedor não é racista, porém se utiliza, de maneira consciente, de uma provocação de mau gosto com o intuito exclusivo de desestabilizar o adversário? E em relação ao torcedor que provoca o razzismo preventivo? Seria esse o caso evidente do uso de racismo como manifestação ideológica ? Cada indivíduo terá sua própria interpretação sobre isso.
Há muitos exemplos de racismos no calcio. Para tentar elucidar alguns casos contemporâneos, temos uma matéria do L’Huffigton Post, de 2013, intitulada “Uma semana contra o racismo nos estádios”. Nela, são apresentadas três casos de 2013, sendo um que deles envolve um brasileiro. Um é de Kevin-Prince Boateng, o meio-campista do Milan, à época, de origem alemã e ganesa que, durante um amistoso, deixou o campo com raiva e se dirigiu ao vestiário, forçando a suspensão da partida. Outro é o de Mario Balotelli, insultado pelos ultras da Internazionale, que fizeram gestos de macaco e levaram bananas de plástico inflado para as arquibancadas, no San Siro. E por último, Francesco Ribeiro, futebolista brasileiro da equipe Berretti del Casale, atuante em ligas menores, também vítima de racismo, e, assim como Boateng, interrompeu o jogo com a anuência do seu treinador e companheiros de equipe, entoando que estes cânticos em alusão a macacos tinham que acabar.
Já a matéria do Corriere dello Sport, de 2016, “Racismo no Futebol: de Omolade a Eto’o, os precedentes”, descreve uma situação de razzismo preventivo. Em 2001, Akeem Omolade, jovem atacante nigeriano do Treviso foi vaiado com insultos racistas pelos fãs de sua própria equipe. No jogo seguinte, em casa, os jogadores e o treinador do Treviso entraram em campo com o rosto pintado de preto em sinal de solidariedade ao companheiro negro.
Em 2017, na partida entre Cagliari e Pescara, Sulley Muntari foi o alvo da vez. Após receber insultos racistas e tentar um diálogo com os torcedores do time adversário, o ganês se dirigiu ao árbitro pedindo que paralisasse a partida. O juiz advertiu-o dizendo que não deveria falar com o público e lhe deu um cartão amarelo. Muntari, decidiu, então, abandonar a partida como forma de protesto, recebendo o segundo amarelo. Dois dias depois, o tribunal da liga italiana manteve a suspensão do jogador e não aplicou nenhuma punição aos torcedores do Cagliari. O caso foi repercutido mundialmente, após um alto comissário da Organização das Nações Unidas (ONU) afirmar que “Muntari é um exemplo para todos nós aqui no escritório dos Direito Humanos da ONU. O problema do racismo precisa de maior atenção ou atenção mais profunda da FIFA”. Outros apoios a ele surgiram e, com isso, a Corte Esportiva da Federação Italiana de Futebol cancelou a sua pena.
A experiência de sofrer racismo no futebol não se restringe aos jogadores. Pensando nas estruturas de um clube de futebol: quantos negros são técnicos ou dirigentes de altos cargos? Os papéis mais elevados em relação à repercussão midiática e nível de responsabilidade são majoritariamente reservados aos brancos. Não existe a democracia racial no futebol. São apenas três casos de comandos negros em equipes da Série A italiana. Oficialmente, o primeiro deste rol é um brasileiro: Jarbas Faustino, conhecido como Cané. Depois de uma carreira na Itália, Cané foi estudar e em 1994 voltou ao Napoli — clube que defendera por mais de uma década — para assumir uma equipe da base. No entanto, ele mal sabia que o técnico do time principal, Vujadin Boskov, não detinha habilitação para ser técnico da primeira divisão italiana. Então, sem o seu consentimento, a carteirinha de Cané foi falsificada para que o sérvio comandasse o time napolitano por dois anos. Mas em entrevista ao Gazzetta dello Sport, em 2014, Cané não credita o fato ao racismo e sim a uma falta de conexões entre empresários no clube.
Após esse lamentável episódio, passaram-se quase 20 anos até outro negro ter oportunidade de dirigir um time da elite. Ainda assim, Fabio Liverani, cuja mãe é da Somália, foi demitido do comando do Genoa após sete rodadas, entre junho e setembro de 2013. E por último veio Seedorf — ídolo como jogador —, não durando mais do que 6 meses no Milan, demitido com 53% de aproveitamento.
No romance Scontro di civiltà per un ascensore a Piazza Vittorio [Duelo de civilizações através de um elevador na Praça Vittorio], de 2006, Amara Lakhaos, um escritor argelino que se mudou pra Itália em 1995, utiliza uma expressão futebolística, o catenaccio, para realizar uma metáfora do retrato da sociedade italiana. Segundo ele, o catenaccio não é apenas um modelo defensivo do futebol italiano, mas um modo de pensar e de viver, fruto do subdesenvolvimento, do fechamento e do trancamento do cadeado. Essa metáfora produz uma reflexão que extrapola os limites das táticas do futebol e nos demonstra que a sociedade italiana se mostra muito conservadora, e, por consequência, constitui-se como um lugar mais passível aos muitos casos de xenofobia e racismo.
Olhando para o futebol como um produto da sociedade e da cultura, pelo calcio pode-se investigar minuciosamente problemas estruturais da sociedade italiana, como o racismo. Para combater esse tipo de preconceito, que não é problema exclusivo deste universo, é necessário identificá-lo nos arcabouços da sociedade e, a partir daí, criar mecanismos de conscientização da população para diminuir esse tipo de preconceito. O futebol é um meio de comunicação e não o remédio para um problema secular. Ao mesmo tempo, atitudes espontâneas e organizadas da própria sociedade civil, como no caso de Omolade, são válidas como ferramentas conscientizadoras e de auxílio na busca por igualdade, não só de direito, mas realmente efetiva.
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