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Menotti passou horas a debater-se sobre a possibilidade de levar dois jogadores ao Mundial que acabou por coroar o futebol argentino em 1978. Foi um debate consigo mesmo, com a sua essência. Treinador amante do talento individual sobre qualquer sistema, ao “Flaco” custava-lhe deixar de fora dois jogadores que ele sabia que eram verdadeiros gênios da “pelota”. No final a razão superou o coração e nenhum deles foi convocado para o torneio que a Argentina ganhou. Um deles, um adolescente de dezassete anos, teria a possibilidade de se redimir anos depois. Chamava-se Diego Armando Maradona. O outro, um veterano de 28 anos, continuaria a ser o que sempre foi, uma verdadeira lenda urbana. O seu nome era Tomas Carlovich mas não havia ninguém que não o conhecesse como “El Trinche”.
A sua carreira tinha já uma década de primeira divisão e ainda havia quem julgasse que Carlovich algum dia deixaria de ser esse “pelotero” de bairro, esse “pibe” que sofria do síndrome de Peter Pan e era incapaz de envelhecer, para transformar-se num futebolista profissional como exigiam os novos tempos. Uma metamorfose kafkiana para um jogador que teria encaixado como uma luva na velha filosofia de “La Nuestra” dos anos quarenta e cinquenta. Os anos do exílio argentino do futebol mundial e do encantamento consigo mesmo e com as suas origens “potreras”. Carlovich foi um desses jogadores que tratavam a bola com tanta tranquilidade que no meio da vertigem coletiva parecia que jogavam parados. Mais tarde o futebol argentino continuou a gerar futebolistas nesses moldes, o último dos quais talvez tenha sido Juan Roman Riquelme.
Na década de setenta, a da importante transição cultural dos agressivos anos sessenta que desembocariam no billardismo, a sua figura era tanto enigmática como problemática. Que se podia fazer com alguém que subia a um campo de futebol com a indolência de um compositor de estrofes de amor?
Carlovich nasceu em 1949 na cidade de Rosário, a mesma que mais tarde veria nascer, quase quarenta anos depois, a Lionel Messi. Era filho de uma das muitas famílias de emigrantes que tinham encontrado refúgio na cidade e cedo percebeu que o futebol era a sua única verdadeira vocação. Começou a jogar profissionalmente com dezoito anos com a camisa do Rosário Central, de onde passou para clubes ainda mais modestos como o Central Córdoba ou o Colón de Santa Fé. Nunca esteve perto de assinar por nenhum dos gigantes de Buenos Aires. Todos admiravam o seu talento e temiam a sua falta de compromisso com a profissão. A sua vida fora dos relvados era conhecida de todos e envolvia tantas mulheres e álcool quanto fosse possível.
Os estádios enchiam-se para ver as suas “gambetas” e acrobacias mas o seu jogo era mais visual do que pragmático. Sobretudo era um jogador que olhava para o futebol como um artista sem vontade nenhuma de render-se à exigência do treino e da preparação física. Era capaz de perder treinos para ir caçar e pescar com os amigos. Prometia sempre dar tudo o que tinha em campo mas era incapaz de dar o que quer que fosse durante a semana. José Pekerman, ex- técnico da Colômbia, foi um dos muitos que publicamente reconheceu a sua admiração e até o próprio Diego Armando Maradona, que se cruzou com ele nesses anos em vários jogos para a liga argentina, declarou que Carlovich era capaz de fazer coisas com a bola que até ele invejava.
A sua fama começou a forjar-se em 1974 quando a seleção argentina estagiava em Rosário para preparar-se para o Mundial da Alemanha Ocidental. O selecionador nacional, Vladislao Cap, solicitou aos clubes rosarinos que formassem um onze competitivo para testar os seus internacionais. Ao intervalo a superioridade dos rosarinos era tal que o próprio selecionador pediu pessoalmente ao treinador do onze improvisado que tirasse Carlovich do campo. Tinha de tal forma destroçado a defesa titular da seleção que Cap temia que acabasse por minar definitivamente a sua confiança com mais quarenta e cinco minutos de jogo por disputar. Foi ao informar-se depois do que era na realidade Carlovich fora de campo que Cap tomou a decisão de não o considerar para futuras convocatórias. A sua perdição foi sempre a base do seu sucesso.
Carlovich foi um desses mitos que o futebol romântico perpetuou. Para muitos dos argentinos que o viram jogar o seu livro de truques e habilidades e o seu baile de pés podia perfeitamente rivalizar com o gênio de Di Stefano, Maradona ou Messi no quadro de honra dos futebolistas argentinos. Mas se “El Trinche” era, sem dúvida, um dos maiores habilidosos com o esférico nos pés da sua geração, a verdade é que o seu espírito de puro “potrero” acabaria por condená-lo aos olhos da posteridade.
Faltaram-lhe títulos, jogos com a Albiceleste e talvez algum que outro Boca vs River no curriculum para entrar nessa lista. Talvez porque para muitos são essas condições as que separam o trigo do joio dos futebolistas de elite. Carlovich seguramente pensaria o oposto e quando decidiu pendurar as botas fê-lo com a genuína convicção de que tinha dado o seu melhor. Foi nesse verão de 86 que “El Trinche” deixou de bailar a “pelota” como se estivesse numa tarde de domingo na praça do bairro, rodeado de paredes e solidão. A quilômetros de distância, o tal pequeno Maradona elevava a sua condição de “potrero” a outra dimensão, alcançando as estrelas da posteridade. Um e outro, dois lados de uma mesma moeda cruzaram por uma última vez destinos traçados nos farrapos perdidos pela areia e lama nessas tardes de jogos com mais minutos dos que se podem contar.
Jornalista e escritor. Autor dos livros “Noites Europeias”, “Sonhos Dourados” e “Toni Kroos: El Maestro Invisible”, “Sueños de la Euro” e “Johan: a anatomia de um gênio” Futebol e Política têm tudo a ver, basta conectar os pontos. O coração de menino ficou no minuto 93 da final de Barcelona. Estudou comunicação na Universidade do Porto.
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